Renegociação

Recuperação de empresas e clubes: há diferenças?

Com a vigência da Lei da Sociedade Anônima de Futebol (SAF), Lei 14.193, de agosto de 2021, criou-se a possibilidade de clubes de futebol se utilizarem dos meus de reestruturação previstos na Lei de Recuperação de Empresas, com ênfase para recuperação judicial e extrajudicial. São alternativas ao Regime Centralizado de Execuções (RCE), instituído pela mesma norma.

A legislação veio para oferecer respostas ao problema histórico de endividamento do futebol brasileiro e proporcionar a transformação nesse mercado, seguindo o movimento já realizado em outros países.

Com o RCE, um privilégio dos clubes, é criado um sistema que gera controle sobre processos de execução judicial já em curso, mediante fluxo de pagamento previamente estabelecido pela própria Lei da SAF, que envolve, via de regra, 20% das receitas da SAF, quando essa tiver sido constituída. Se essa ferramenta não for suficiente, há as recuperações, em suas modalidades judicial ou extrajudicial. Em síntese, passam a existir trilhas a serem seguidas naqueles casos em que é necessário encontrar solução para dívidas.

Uma das dúvidas que pode surgir, principalmente para quem não é iniciado na área, é sobre eventuais adaptações que precisariam ser feitas para os clubes, no caso de optarem por uma das formas recuperacionais, que foram originalmente pensadas (em 2005) para outros tipos de negócios (indústria, serviços, comércio, etc.). O questionamento fica ainda mais latente diante do recente pedido de recuperação judicial das Americanas, que ganhou imenso destaque na semana passada. Enfim, é tudo a mesma coisa?

Antes de enfrentar o tema, vale explicar que a Lei de Recuperação de Empresas traz dois vínculos recuperacionais: extrajudicial e judicial. A primeira é uma forma híbrida do instrumento, em que as negociações do devedor com seus credores acontecem fora do Poder Judiciário, que é acionado apenas em duas situações: enquanto estiverem negociando, para proteger o devedor em crise de ataques que seus credores resolvam fazer (por meio do que chamamos, tecnicamente, de tutela cautelar antecedente); ou, já havendo acerto, para homologação do plano de recuperação extrajudicial, documento que se caracteriza por ser um contrato coletivo, no qual são vertidas as novas formas de pagamento, do que derivará a sujeição obrigatória daqueles credores que não concordam com o combinado entre a maioria (ou seja, atrás do cram down, efeito da decisão judicial que aceita o pedido, que existe na modalidade de recuperação extrajudicial de homologação obrigatória).

Já a recuperação judicial é a espécie em que a negociação do devedor com seus credores acontece em ambiente judicial, depois da apresentação do pedido, e sob a supervisão do juiz, que será auxiliado por um administrador judicial. Ela se desenvolve inteiramente perante o Judiciário, considerando-se um meio estruturado de reorganização.

Comporta, ainda, a realização de assembleias para aprovação ou rejeição do plano e o acompanhamento das atividades do devedor pelo período de supervisão, depois que esse for aprovado. Na hipótese de sua rejeição, advirá a decretação da falência, o que, em tese, também poderá acontecer com os clubes que não tiverem êxito no convencimento de seus credores à aceitação das novas condições de pagamento da dívida.

A recuperação judicial é, das duas, a ferramenta mais conhecida, tendo abrangido desde casos de grande interesse e volume de dinheiro, como a das Americanas, até os bens pequenos, inclusive de micro e pequenas empresas (embora a Lei de Recuperação traga uma variante específica para as ME e EPPs, com um plano especial, ela é raríssima). Por esse caminho seguiram clubes como Cruzeiro, Santa Cruz, Coritiba, entre outros.

É preciso dizer que o ambiente de recuperação judicial é bem mais estressado que a recuperação extrajudicial. As dinâmicas que tendem a existir são bastante ácidas e, muitas vezes, é porque já perdeu a capacidade de diálogo que faz sentido escolher uma recuperação judicial, que são maiores e mais claros se comparados com a extra. Enfatizo, portanto, que o caso concreto e suas dinâmicas é que determinarão o caminho mais adequado a seguir, sem premissas legais ou preconcepções. Funciona como o tratamento médico: para cada doença, há um protocolo recomendado.

Dito isso, o leitor já começa a entender que não importa o tamanho da dívida, tampouco a complexidade da estrutura de capital, o passo a passo dos procedimentos permanece inalterado. Ou seja, as etapas processuais serão as mesmas para varejista que detém uma dívida bilionária, ou para a padaria da esquina.

A essa regra se sujeitam os clubes: ainda que sejam associações civis (que, originalmente, não poderiam recorrer às recuperações), e que comportem, não raro, dívidas bastante volumosas, nada muda na comparação com as empresas.

As adaptações para cada tipo de negócio (futebol, indústria, comércio, serviços, etc.) ficam por conta dos planos, que compõe a parcela contratual. Neles é que as cláusulas poderão ser ajustadas a cada realidade, mas a estrutura procedimental permanece a mesma.

Portanto, ainda que o futebol envolva grandes paixões, a Lei de Recuperação de Empresas se adapta perfeitamente às suas peculiaridades e, desde 2021, abriu-se com oportunidade de reestruturação de clubes que, ao longo dos anos, acumularam dívidas e que pretendem se servir da proteção legal para acertar as contas com o passado e, com isso, garantir o futuro.

Reportagem originalmente publicada em Valor Econômico

Publicado em
14/9/2023