Renegociação

Recuperação extrajudicial e o papel dos sindicatos ao negociar crédito trabalhista

Instrumento pode ser, cada vez mais, o meio negocial para situações em que o tratamento pontual do passivo é suficiente para superar crise.

A recuperação extrajudicial está presente no ordenamento jurídico brasileiro desde a vigência da Lei 11.101/05, Lei de Recuperação de Empresas e Falências (LRE), que a introduziu como alternativa híbrida de preservação da atividade viável, em que a atuação do Poder Judiciário é pontual e ocorre apenas ao final de uma negociação, que tende a se desdobrar fora de seus limites.

Na recuperação extrajudicial, ao Judiciário compete o quase singelo papel de homologar o plano – sujeitando os credores dissidentes abrangidos, em caso de se tratar da modalidade de homologação obrigatória –, além do habitual papel (aplicável também à recuperação judicial e mesmo à extrajudicial de homologação facultativa) de controlar sua legalidade.

Por princípio, a recuperação extrajudicial deveria ser um instrumento efetivamente considerado e aplicado pelos operadores do direito. Isso por conta de sua especial condição de customização do passivo atingido, permitindo selecionar credores e classificá-los por espécies de crédito ou grupos (naturezas); por se tratar de um instrumento mais simples e célere que a recuperação judicial, com menor custo envolvido, inclusive reputacional; ausência de risco de decretação de falência; entre outros importantes pontos que lhe são próprios.

Entretanto, muito provavelmente porque sua versão original apresentava severas obscuridades, lacunas e exigia quóruns mais amplos de aprovação, o instituto da recuperação extrajudicial não ocupou o lugar a ela reservado no sistema de insolvência. Ao longo de quinze anos de vigência da LRE (2005-2020), a belicosa recuperação judicial prevaleceu, apresentando-se como ferramenta preferida na reestruturação de dívidas de empresas em crise, reforçando a cultura de litigância que impera no Brasil.

Segundo dados do Observatório Brasileiro de Recuperação Extrajudicial (OBRE) – disponíveis em www.biolchi.com.br/obre, até 2020, foram 49 pedidos de recuperação extrajudicial em todo território brasileiro, contra mais de 13 mil recuperações judiciais, segundo registros da Serasa.

Estava claro, portanto, que, a fim de viabilizar a utilização dos seus inúmeros benefícios intrínsecos, a recuperação extrajudicial carecia de sério aprimoramento. Nesse cenário é que foram propostas providenciais alterações legislativas, trazidas pela Lei 14.112/20, com o propósito de incentivar seu uso para os casos em que efetivamente se apresentasse como ferramenta adequada e suficiente.

Dentre os diversos aspectos alterados, veio a inclusão, no escopo do plano de recuperação extrajudicial, do crédito trabalhista. Assim que, a partir de janeiro de 2021, passou a ser possível ao devedor incluir, dentro do passivo a se negociar na recuperação extrajudicial, os credores com créditos de natureza trabalhista.

A lei, contudo, fez relevante ressalva: a sujeição dos créditos de natureza trabalhista e por acidente de trabalho exige negociação coletiva com o sindicato da respectiva categoria profissional (artigo 161, §1º.).

Essa exigência demanda, para correto dimensionamento, atenção e análise, principalmente no sentido de percorrer a própria legislação trabalhista e decisões judiciais que já sinalizam com maior clareza qual é, de fato, o papel dos sindicatos no processo.

O artigo 511, da Consolidação da Lei Trabalhista (CLT), define o sindicato como associação que, entre outros objetivos, visa à defesa dos interesses econômicos ou profissionais de todos os que representa.

A LRE, ao exigir a prévia negociação com sindicato, tem como fim a proteção do trabalhador, reconhecidamente hipossuficiente, em procedimento essencialmente negocial, e que, diferentemente da recuperação judicial, não vem acompanhando da fiscalização do administrador judicial (mais uma de suas importantes diferenças).

Entretanto, a referida imposição não se verificaria complexa ou obstaculizante, em princípio, salvo por uma importante questão, que já se verifica na prática: o óbice posicional e cultural, segundo o qual os sindicatos não estejam necessariamente dispostos a sobrepor a preservação da empresa em crise, por meio de saídas negociadas e dialogadas, que porventura possam levar à concessões em termos de tempo de pagamento e estoque de dívida, aos interesses de curto prazo de seus representados. Situação que, não sendo bem endereçada, apresentaria impedimento prático, com potencial para retroceder o que deveria ser um avanço legislativo.

E não se diga que eventual negativa de participar da negociação se trata de quimera supositiva; pelo contrário, já foi enfrentado no caso da Recuperação Extrajudicial do Figueirense Futebol Clube Ltda (5024222-97.2021.8.24.0023/SC). Naquela ação, a associação representativa de categoria profissional abrangida pelo plano simplesmente se recusou a tomar assento em reuniões de negociação, numa clara tentativa de inviabilizar o cumprimento da exigência legal.

Acertadamente, a decisão judicial que enfrentou o impasse consignou que “se tal prática se perpetuar, estariam os processos de recuperação extrajudiciais inviabilizados pelo simples entendimento equivocado do sindicato em não querer sentar à mesa de negociações”. Conclui-se, portanto, que a mera oportunidade de negociar já seria suficiente para satisfazer a lei (como defenderam os autores do presente artigo, em obra recentemente publicada: BONTEMPO, Joana, SANT’ANA, Maria Fernanda; OSNA, Mayara. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Le 11.101/2005. Editora Foco: Curitiba, 2022). Assim, andou bem a sentença que homologou o plano e considerou satisfeita a exigência legal pela mera possibilidade de diálogo buscada pelo devedor, ainda que não acolhida pela associação profissional.

Vale dizer que o artigo 617, da própria CLT, admite a possibilidade de negociação direta entre empresas e trabalhadores, mesmo frente ao inciso VI, do artigo 8º, da CLT, que determina ser obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas.

Nesse sentido, veja-se que o caso em comento está muito em linha com a jurisprudência trabalhista, havendo entendimento da justiça especializada, representada pelo próprio Tribunal Superior do Trabalho, na Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SBDI-1), de que empresas e funcionários podem negociar diretamente as condições de trabalho, caso o sindicato da categoria se negue a seguir com a negociação.

Ao longo dos anos, muito embora, por um lado, a justiça do trabalho tenha possibilitado maior espaço para negociações coletivas – com participação sindical –, por outro tem trazido decisões que justamente limitam o papel das associações representativas. Essa postura ganha ainda maior eco no ambiente de reestruturação empresarial porque se adiciona, aos interesses em jogo, o princípio da preservação da empresa em crise, que é princípio basilar da legislação em comento, e anseio da sociedade capitalista.

Com interpretações adequadamente calibradas, é possível assegurar que a recuperação extrajudicial se torne, cada vez mais, o meio negocial utilizado para situações em que o tratamento pontual do passivo é suficiente para superação da situação de crise. Até porque sua eventual utilização não impede que, futuramente, a empresa devedora se valha, caso necessário, da recuperação judicial, com suas nuances mais gravosas.

Por conseguinte, as mudanças legais precisam ser interpretadas de forma a possibilitar a ampliação da sua participação no sistema insolvencial, consolidando o incipiente movimento de aumento no número de casos relativos que já começa a despontar no horizonte: desde a Lei 14.112/20, enquanto os casos de recuperação judicial caíram (segundo a Serasa, 2022 teve o menor número dos últimos 12 anos, com 697 em todo Brasil), a modalidade extrajudicial cresceu (os dados do Observatório revelam que, em 2021, foi ajuizada 1 recuperação extrajudicial para cada 64 judiciais; e em 2022, 1 para cada 54).

Um sistema de insolvência saudável comporta instrumentos variados e flexíveis, de forma a ter respostas pontuais e coerentes às reais dificuldades dos agentes econômicos, condição essencial para a sua efetividade e sanidade. Cabe aos intérpretes buscarem os meios necessários para garantir a coerência e a higidez das ferramentas, o que só será possível pela interpretação equilibrada e coerente das normas legais.

Publicado em
14/9/2023